Cidade Grande, nova Casa Grande; Periferias, novas
Senzalas.
Gilvander Luís
Moreira [1]
Em 1933, Gilberto Freyre revelou a
estrutura colonial da empresa Brasil: Casa Grande e Senzala, aquela vivendo à
custa dessa. Na e a partir da Casa Grande, o senhor de engenho manda. Na e a
partir da Senzala muitos baixam a cabeça e obedecem, e, assim, são
escravizados, mas uma minoria, como Zumbi e Dandara, levanta a cabeça, foge e organiza
quilombos como o de Palmares. Passa-se o tempo, mudam-se os rótulos, mas a
lógica e a estrutura escravocrata continuam funcionando a todo vapor. Os
em-pregados de hoje, quem ganha apenas salário-mínimo são, na prática, os
escravos da atualidade.[2]
Sobrevivem nas periferias das regiões metropolitanas, as chamadas “cidades
dormitórios”, mas, na realidade, são as novas Senzalas que movimentam a nova
Casa Grande, a Cidade Grande.
Dia 30 de setembro de 2012, celebramos
missa na Comunidade Santa Teresinha, em Justinópolis, Ribeirão das Neves, região
metropolitana de Belo Horizonte, com a igreja lotada. Após a missa, pedi que
levantasse a mão quem trabalhava em Belo Horizonte. 95% dos jovens e adultos
levantaram a mão. “A que hora vocês saem
de casa para ir trabalhar?”, indaguei. “Às
4,5 horas”, uns gritaram. “Às 5 horas”,
disse a maioria quase em coro. “A que
horas vocês chegam de volta do trabalho? “Às 20:00h”, disseram uns. “Às
20:30h”, outros. “Vocês vão dormir a
que hora?” “Às 11 da noite.”
Outros: “À meia noite.” “Como é a viagem nos ônibus para ir trabalhar
e para voltar?” “Os ônibus estão
sempre superlotados. As passagens são muito caras. Demora muito a viagem.
Deveria ter mais ônibus. É uma canseira danada ter que enfrentar a ida e a
volta para trabalhar”, diziam todos.
Ribeirão das Neves, com 350 mil habitantes,
é uma das 31 cidades da região metropolitana de Belo Horizonte, é a “cidade das
prisões”, pois há cerca de 6 mil presos em grandes complexos penitenciários. “Basta de construir prisões aqui na nossa
cidade!”, gritam os nevenses indignados.
Pedi para levantar a mão quem tinha
nascido na roça, no campo. 80% dos adultos levantaram a mão. É só fazer memória
das coisas boas da roça que todos brilham os olhos. Sinal de que o povo sai da
roça, mas a roça não sai do povo.
“Onde
vocês trabalham em Belo
Horizonte e o que fazem?”, perguntei. Ouvi uma lista
enorme de profissões e serviços: doméstica, cuidadora de idosos, servente de
construção, pedreiro, motorista, motoboy, vigia, secretária. “E o salário?” Uns ganham salário-mínimo;
outros 1,5 salário; No máximo, dois salários mínimos. “Vocês têm casa própria?” Uma minoria disse que sim. A maioria
sobrevive em favelas, ou na cruz do aluguel ou ainda na humilhação do
sobreviver de favor em casa de parentes. Alguns disseram que trabalham em Belo Horizonte a semana
toda, dormem nas ruas e voltam para casa na região metropolitana somente nos
finais de semana.
Os pobres da cidade e do campo são os
que constroem a cidade e o campo. O povo das ocupações urbanas da capital
mineira – Comunidades Camilo Torres, Dandara, Irmã Dorothy, Zilah
Sposito-Helena Greco e Eliana Silva – cerca de 1.900 famílias, exceto os
desempregados e os que estão na economia informal, trabalha nas indústrias, nas
empresas, no comércio, nos órgãos públicos do Estado e nas residências das
classes média e alta, geralmente em trabalhos manuais, os considerados indignos
para quem cursou uma faculdade. Eu conheço mulheres de ocupações urbanas sendo:
a) copeiras na UFMG; b) cuidadoras de idosos no Belvedere; c) domésticas no bairro
Mangabeiras – bairro mais enriquecido - em casa com 2 pessoas e 32 quartos ; d) lavadeiras
de ônibus; e) rejuntadoras de piso de apartamentos; f) Pedreiros, inclusive, um
que, com braço quebrado, estava na ocupação Eliana Silva. Ele me disse: “Há 25 anos ajudo a construir casas e
apartamentos para empresas e outras pessoas, mas não consegui ainda adquirir
minha casa própria.”; g) Serventes, como o que encontrei chorando na UPA[3]
de Venda Nova, em BH. Ele já caiu várias vezes de escadas, enquanto trabalhava
em construções, porque há 3 anos está numa via sacra de hospital em hospital,
de UPA em UPA, precisando fazer uma cirurgia do ouvido que dói constantemente e
está todo purulento. Por isso ele já está surdo de um ouvido e ouvindo pouco do
outro.
O
grau máximo dessa violência se dá quando não se reconhece a humanidade do
outro. Mais além: O projeto dominante de cidade, hoje, busca alargar cada vez
mais os espaços privados e, por isso, reduz os espaços públicos. Exemplos disso
não faltam. No Mangabeiras, um dos bairros nobres de Belo Horizonte, em 1 Km2
vivem folgadamente mil pessoas, enquanto no bairro, ao lado, na Serra, onde há
o Complexo das favelas da Serra, em 1 Km2 sobrevivem arrochadas
cerca de 40 mil pessoas, isso segundo dados do IBGE.
Nesse contexto de nova Casa Grande e
novas Senzalas, enquanto o prefeito de BH, o governador de Minas e a presidenta
Dilma Rousseff não construíram nenhuma casa pelo Programa Minha Casa Minha Vida
para famílias de zero a três salários mínimos na capital mineira, sob a
liderança de movimentos sociais populares – como as Brigadas Populares[4]
e o MLB[5] - que
empoderam os pobres, o povo das Ocupações urbanas de Belo Horizonte está
construindo mais de 2.400 casas de alvenaria. Isso em cinco anos de luta. A
Comunidade Camilo Torres, já construiu (ou está em construção) 142 casas;
Dandara, mil casas; Irmã Dorothy, 137 casas; Zilah Sposito-Helena Greco, 140
casas; Novo Lagedo, cerca de 1.000 casas. Total: 2.419 casas.
E mais: não tem sido só a construção de
casas, mas a construção de pessoas, de valores que contrapõem os valores da
sociedade capitalista, como a colaboração, a solidariedade, o reaproveitamento,
o trabalho coletivo e em mutirão, a produção de alimentos sem agrotóxicos, a
troca, a amizade e o cuidado.
É luta por direitos humanos para sair da
cruz do aluguel e do sobreviver de favor. Essas conquistas se tornam possíveis
graças à conjugação de muitas forças vivas da sociedade, tais como: a) A
construção de movimentos sociais populares idôneos e realmente comprometidos
com a luta dos injustiçados; b) Organização dos pobres; c) Constituição de uma
Rede de Apoio externo que aglutina as melhores forças vivas da sociedade; d)
Busca incessante de conhecimento crítico; e) Clareza sobre o projeto de cidade
e de campo que queremos; f) Cultivo de místicas libertadoras; g) Solidariedade
mútua; h) Trabalho coletivo.
Assim, como resistência à violência da nova Casa
Grande, a Cidade Grande, novos “Quilombos” estão sendo construídos. Lutamos por
uma cidade que caiba todos, numa convivência multicultural. Buscamos conviver
respeitando o outro, aprendendo a admirar e amar o outro, mas de forma
diferente. Se aliando ao outro que está na horizontalidade – é diferente, mas
não oprime -, mas lutando para retirar as armas do outro que está na
verticalidade, em uma
[1] Frei e padre da Ordem dos
Carmelitas, licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia
pelo Instituto Teológico São Paulo, mestre em Exegese Bíblica
pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; assessor do CEBI, SAB, CEBs,
CPT e Via Campesina. Cf. www.gilvander.org.br
No facebook: Gilvander Moreira
[2] Cf. o Filme Quanto vale ou é por
quilo.
[3] Unidade de Pronto Atendimento.
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