terça-feira, 15 de maio de 2012

Em Belo Horizonte: caveirão para os pobres que lutam


Cerca de 300 famílias jogadas ao relento sob uma noite fria.
Gilvander Luís Moreira[1]
Ai daqueles que pisam nos pobres, que tripudiam sobre a dignidade de crianças recém-nascidas, idosos, deficientes e indefesos, todos pobres!
Por ter acompanhado estando junto, eu vi e nunca esquecerei. Vi e dou testemunho.
Vi os pobres se organizarem durante meses buscando se libertar da cruz do aluguel, que come no prato do pobre, que é veneno para quem ganha só salário-mínimo.
Vi os cansados da humilhação de sobreviver de favor dar um grito de liberdade: Pátria Livre! Venceremos!
Vi na madrugada do dia 21 de abril de 2012 cerca de 350 famílias sem-terra e sem-teto ocuparem um terreno devoluto do Estado de Minas, área abandonada há mais de 40 anos.
Vi as cerca de 1.500 pessoas resistirem bravamente e não serem despejadas já no primeiro dia da ocupação.
Via o MLB – Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas – coordenar a Ocupação Eliana Silva[2] com idoneidade, com participação ativa e paixão defesa dos pobres.
Vi durante três semanas, quase todos os dias, o povo, melhor dizendo, a comunidade que estava se formando na Ocupação Eliana Silva, grande lutadora da Ocupação Corumbiara, em Belo Horizonte.
Vi a sensatez da Dra. Moema, juíza de plantão, negar dia 21/04/2012, a reintegração de posse à prefeitura de Belo Horizonte, porque a área ocupada não tem registro, nem matrícula e nem está averbada. Até 1992 era terra devoluta do Estado de Minas Gerais.
Vi, com tristeza, a juíza Luzia – que deveria gerar luz, mas gerou trevas –, da 6ª Vara de Fazenda Pública Municipal, cancelar a decisão da juíza de plantão e, mesmo sem a prefeitura de Belo Horizonte comprovar ser a legítima proprietária e ter posse do terreno, em uma decisão ilegal mandar reintegrar a prefeitura na Posse do terreno, autorizando a polícia a usar a força, sem oferecer uma alternativa digna para as 350 famílias. A juíza se sensibilizou ao ouvir que a prefeitura tinha a intenção de construir ali um Parque Municipal, mas não sabe ela que na região há um parque municipal que está abandonado.
Vi, acreditando na sensibilidade da juíza Luzia, ela pedir o cadastro das famílias e prometer fazer Audiência de Conciliação. Promessa não cumprida. Sem deliberar sobre Embargos de Declaração e sem que a prefeitura demonstrasse ter a propriedade e ter tido posse antes da ocupação, a juíza exigiu que o despejo fosse feito com urgência. Mas lá não havia coisas, mas seres humanos marginalizados que precisam ser respeitados na sua dignidade.
Não vi, mas ouvi que o prefeito de Belo Horizonte, sr. Márcio Lacerda e seu procurador Geral, sr. Marco Antônio, pressionaram fortemente a juíza e desembargadores para que o despejo covarde fosse feito sem piedade.
Vi, às 01:20h da madrugada quando alguém me ligou no meu celular e, dizendo que não podia se identificar, me disse: “Frei Gilvander, sou oficial militar. Estou chorando, não consigo dormir. Por um dever de consciência estou ligando para lhe informar que um fortíssimo aparato repressivo da PM cumprirá reintegração de posse e despejará a Ocupação Eliana Silva, do Barreiro, hoje cedo. Estou temendo que possa haver derramamento de sangue.”
Vi, após passar toda a madrugada em claro, às 07:30h da manhã do dia 11 de maio de 2012, a polícia militar chegar e congelar toda a área no entorno da Ocupação Eliana Silva. Durante o dia inteiro quem saísse era proibido de voltar e quem vinha para se fazer solidário era proibido de entrar. As pessoas que saíram para trabalhar antes da polícia chegar, ao saber da agressão à ocupação, tentaram voltar, mas foram impedidos de entrar e se irmanar na resistência. Tiveram que se somar à resistência oferecida pelas Ocupações-comunidades Camilo Torres e Irmã Dorothy e por centenas de apoiadores que foram se solidarizar com a Ocupação Eliana Silva.
Vi chegar mais de 400 policiais da polícia militar: tropa de choque, GATE e outros pelotões de polícia militar do Estado de Minas Gerais.
Vi chegar ao lado da Ocupação Eliana Silva um Caveirão – um tanque de guerra -, que eu só tinha visto, via televisão, fazendo incursões em comunidades empobrecidas do Rio de Janeiro.
Vi centenas de policiais armados até os dentes, com gás lacrimogêneo, cães, cavalaria com arma em punho. Muita truculência e prepotência.
Vi e ouvi policiais dizendo que sem-terra e sem-casa devem ser moídos no cacete.
Vi, após duas horas de tentativa de negociação, a tropa de choque atropelar algumas pessoas: mães com crianças; o Paulo, que levou uma cacetada na cabeça; a Dirlene Marques (economista da UFMG), que foi agredida por policiais e ficou com hematomas. Motivo: após ser impedida de entrar e esperar umas seis horas, resolveu driblar a polícia e tentar entrar na Ocupação simplesmente para ser solidária.
Vi, aliás, centenas de pessoas que vieram de longe para ser solidárias com as 350 famílias da Ocupação Eliana Silva serem barradas durante os dois dias de despejo e resistência da comunidade, sem poder ter acesso ao epicentro da operação de guerra que se desenvolvia. Era o “Pinheirinho do Governo de Minas”. Inclusive nisso são semelhantes.
Vi por várias vezes o helicóptero da PM fazendo vôos rasantes sobre a Ocupação com metralhadoras apontadas para o povo. Vi dezenas de crianças chorarem e se abraçarem às mães com pavor daquele “pássaro” que ameaçava atirar nelas. Seria diferente se estivesse ali as crianças de quem mandou fazer o despejo?
Vi muitas mães serem barradas pela polícia ao pedir para entrar na ocupação para pegar remédios para dar seus filhos que padeciam alguma doença. Muitas mães foram impedidas de amamentar seus filhos.
Vi o povo da Ocupação Eliana Silva, sob a liderança do MLB, resistir bravamente de forma pacífica. Sentados todos diziam e repetiram o dia inteiro: “Daqui não sairemos. Só se for presos e algemados.”
Vi, com uma punhalada no meu coração, policiais, garis e funcionários da prefeitura de Belo Horizonte quebrarem 350 barracas de lona preta que era a única casinha que as famílias tinham para morar. Ao serem questionados, alegavam constrangidos: “Tenho que cumprir ordens, senão serei desempregado.”
Vi, com os olhos do meu coração, o prefeito de Belo Horizonte, sr. Márcio Lacerda, o Governador de Minas, sr. Anastásia, a PM de Minas, a juíza Luiza, o TJMG e muitos vassalos pisarem, tripudiarem, cuspirem no rosto dos pobres que têm a ousadia de não ser só força de trabalho para as classes média e dominante, mas, de cabeça erguida, lutam, de forma organizada, para viver com dignidade.
Vi vários veículos da grande imprensa ouvirem só a versão da polícia que, com a maior desfaçatez dizia: “Está tudo na normalidade. Estamos simplesmente cumprindo ordem. O povo vai ser levado para um lugar digno...” Isso é querer tapar o sol com a peneira. Pisar na dignidade dos pobres é normalidade? Tão bom seria se os pobres parassem de trabalhar para seus opressores! Cumpriam ordem, sim, mas ordem injusta, imoral. Levar para “abrigos”, que na prática são campos de concentração, é levar para lugar digno? Os dois mil irmãos em situação de rua no centro de Belo Horizonte preferem sobreviver nas ruas do que ir para os abrigos da prefeitura, porque são horrorosos.
Não vi, mas penso que os que autorizaram o covarde despejo da Ocupação Eliana Silva, sem alternativa digna, devem estar dormindo tranqüilos em quartos e mansões confortáveis, enquanto cerca de 300 famílias que não se vergaram estão passando essa noite fria ao relento no meio dos escombros, onde por 21 dias estavam vivendo felizes, construindo comunidade, com muita ajuda mútua, solidariedade e espírito fraterno de luta.
Vi também a luz e a força de muita gente que, mesmo proibidas de entrar, se fizeram  solidárias.
Vi, sob uma noite fria, o povo como ossos ressequidos clamando por ressurreição.
Vi que fizeram uma grande sexta-feira da paixão dia 11 de maio de 2012 aqui em Belo Horizonte com a Ocupação-comunidade Eliana Silva, mas sei que a verdade que liberta virá à tona. Por isso, um domingo de ressurreição brotará.
Vi o presente de grego que as mães da Ocupação Eliana Silva receberam: repressão, fel. Aliás, há 15 dias uma Comissão na Ocupação já estava planejando fazer um almoço especial para as mamães da Ocupação.



Vi clamores que interpelam nossa consciência e os registrei em várias entrevistas que, em vídeos, estão emwww.gilvander.org.br (Galeria de vídeos). A quem não viu sugiro ver essas entrevistas. Eu sugeri à juíza Luzia que as visse, mas ...
Vi várias mães, como Diocélia, que, durante 36 horas, foram impedidas de amamentar seus filhos.
Vi muita coisa que me marcou indelevelmente, inclusive, caveirão para os pobres de Belo Horizonte.
Vi e verei sempre que a luta por libertação integral e pela conquistas de direitos humanos - e ecológicos - continuará sempre até depois da vitória.

Belo Horizonte, às 01:10h madrugada do dia 12/05/2012, véspera do dia das mamães, expressão infinita do amor infinito.



[1] Frei e padre carmelita; mestre em Exegese Bíblica; professor do Evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos, no Instituto Santo Tomás de Aquino – ISTA -, em Belo Horizonte – e no Seminário da Arquidiocese de Mariana, MG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina; e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br – www.gilvander.org.br –www.twitter.com/gilvanderluis - facebook: gilvander.moreira

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